“Não há nada mais perigoso do que o novato entusiasmado.” (Sabedoria popular) Vamos Refletir...
"Observamos uma intensa discussão em nosso meio quanto às características do ensino médico. Uma das mais nítidas premissas, talvez uma das únicas em que se tem consenso, é a de que o ensino da medicina precisa melhorar rapidamente, num choque de qualidade que não pode mais ser adiado, sob pena de inundarmos o País com profissionais despreparados, desestimulados e sem qualquer compromisso com as verdadeiras mazelas de saúde do povo brasileiro.
A solução para esse problema é multifacetada. Por um lado, encontramos a expansão desenfreada de escolas médicas, absolutamente desnecessárias, abertas com finalidade mercantil e com critérios unicamente políticos, numa forma semelhante à que antigamente se encontrava na concessão de cartórios e de rádios pelo Brasil. Por outro lado, conseqüência parcial da anterior, encontramos o despreparo do pessoal docente, muitas vezes não-titulado e, o que é muito pior, não-preparado para transmitir o conhecimento médico de maneira estruturada e coesa. Finalmente, temos o currículo de muitas escolas com enormes vieses quanto à nossa realidade de saúde e à necessidade de preparar profissionais para as necessidades prementes do País.
Essas necessidades incluem, com certeza, profissionais bem preparados para a assistência à população, mas não param aí; precisamos urgentemente de pesquisadores e professores preparados em âmbito internacional que nos permitam manter o ensino médico em qualidade satisfatória e criar soluções adequadas as nossas realidades, o que somente pode ser feito com seriedade científica. A não-percepção dessa realidade pode nos colocar em risco de nos tornarmos eternos consumidores de conhecimentos estrangeiros e de adaptações precárias de soluções criadas para realidades distintas das nossas.
Assim como as pessoas, as instituições de ensino têm vocações específicas e diferentes. Entre as escolas médicas, podemos identificar algumas com uma notada vocação de formar bons profissionais para o dia-a-dia; outras, particularmente as das universidades públicas com mais recursos, a de formar, a par desses profissionais, pesquisadores e docentes. Esse perfil, obviamente, necessita abordagem diferenciada de estrutura educativa e de didática médica.Essa face da realidade pedagógica do ensino da medicina parece não ser levada em conta pelos que se digladiam, por vezes, ao defender o modelo fisiopatológico clássico ou o modelo de ensino baseado em problemas, como se qualquer um dos dois fosse “a salvação da lavoura” quando se fala em currículo médico.
O ensino clássico, que a maior parte dos profissionais utilizou, desde a revolução flexeriana e a reestruturação do ensino médico por Willian Osler, no início do século 20, tem-se mostrado adequado à formação de profissionais de qualidade nesses últimos 100 anos. Valoriza a formação básica e a participação dos laboratórios de cadeiras básicas junto à formação clínica; tem, por outro lado, o inconveniente de dissociar a formação básica de sua aplicação clínica, sendo por vezes desestimulante a alguns alunos. Por outro lado, a metodologia é, muitas vezes, passiva, perdendo-se, às vezes, a chance de formar no aluno o hábito da atualização e da participação, como ator, da solução dos problemas imediatos, sem estímulos adicionais à humanização dos profissionais. Tais limitações vêm sendo percebidas há algumas décadas, dando origem a currículos alternativos em que se estimula a participação precoce dos alunos junto à realidade da vivência médica em hospitais, ambulatórios e domicílios, a possibilidade de eleição de disciplinas opcionais a um currículo nuclear, a elaboração de disciplinas que estimulem a visão humanística da medicina e a criação de blocos de ensino por área de conhecimento médico, bem como a chamada problematização do curso, recurso antigo que insere a discussão de casos concretos, estimulando o raciocínio clínico.
O ensino da medicina baseado em problemas (em inglês PBL – problem based learning) é um recurso didático que ganha cada vez mais aliados. Inicialmente utilizado pela Universidade McMaster no Canadá, desde 1969, vem ganhando aliados em muitas e importantes escolas médicas, como Johns Hopkins, Maastrich, entre outras. Assim como o ensino fisiopatológico relaciona-se congenitamente com a revolução flexeriana, pode-se ver uma relação congênita da revolução do PBL com o advento da medicina baseada em evidências. Supõe-se que, nos Estados Unidos, 10% das escolas médicas utilizem esse sistema. Algumas das vantagens desse método, como refere a própria Universidade McMaster, são: acesso precoce ao meio médico e aos pacientes, formando médicos mais humanizados, motivação para o auto-aprendizado, de vez que os estudantes podem ver o resultado prático de suas próprias investigações, e aquisição de diversas habilidades que permitirão a eles manter-se atualizados em sua vida profissional. Já as limitações que a mesma fonte refere são: perda da estrutura tradicional de progressão, perda de profundidade no conhecimento adquirido,1 bem como a possibilidade de uma menor e mais desestimulante formação em cadeiras básicas, o que parece ser um ponto controverso,2 sendo ainda desconhecida a repercussão desse método na dinâmica do estímulo dos professores.3
Por outro lado, esse tipo de estrutura depende de alguns pré-requisitos indispensáveis, seja do corpo docente, necessariamente treinado, seja dos alunos, necessariamente motivados. A McMaster University, um dos berços do PBL, exige como pré-requisito absoluto duas entrevistas diferentes: “simulated tutorial” e “personal interview”. Na primeira, é avaliada a capacidade do grupo de discutir um problema ou situação de saúde, e, na segunda, dentre vários itens, avalia-se a capacidade de adaptação do indivíduo ao programa da McMaster.4 Como no modelo clássico, os problemas do PBL têm sofrido correções para aprimorar o método, como a participação dos alunos em grupos de pesquisa e a reestruturação com adaptações intermediárias aos dois métodos, com currículos híbridos.5
Qual dos dois é o melhor método para se formar bons médicos? Afora a argumentação proselitista ou apaixonada, esta é uma resposta difícil. Estudos secundários de revisão de estudos controlados sugerem que a metodologia baseada em problemas apresenta uma discreta vantagem no tocante à satisfação dos participantes em cursos de graduação, não se tendo dados confiáveis de cursos de educação continuada e de pós-graduação. Outras publicações sustentam que não existem evidências de que essas mudanças produzam médicos melhores.
Muito provavelmente o melhor desenho curricular deverá ser o que corresponda à vocação intrínseca de cada universidade. Exemplo marcante é o da Universidade de Harvard, que, em seu curso de medicina, apresenta a possibilidade de diversos desenhos curriculares. No chamado The New Pathway M.D. Program, a Universidade apresenta um programa essencialmente baseado em problemas e no The HST M.D. Program, a estrutura é essencialmente clássica, enriquecida com matérias relacionadas a biologia molecular, biotecnologia, ciências físicas e engenharia, visando a uma carreira mais estritamente voltada à pesquisa, sem, no entanto, abandonar as áreas clínicas.8
Talvez venha a ser essa a solução para algumas de nossas universidades; no entanto, até lá, há que se fugir das opiniões reducionistas, ideológicas ou apaixonadas daqueles que crêem que sempre devem ter opinião formada sobre tudo e todos. Não há como negar que seremos todos novatos e não há nada mais perigoso do que um novato entusiasmado."
Olavo Pires de Camargo é Professor livre-docente associado da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
Luiz Eugênio Garcez Leme é Professor livre-docente associado da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
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